Quem hoje de Guimarães olha a Penha não vê o mesmo que viu quem a
olhou no último quartel do século XIX. Onde hoje vemos um manto verde, via-se então
uma paisagem inóspita, revestida de granito. No entanto, não faltava quem lhe cantasse
as belezas, ajudando a preencher a mitografia da montanha que se debruça sobre Guimarães. De todos os poetas, terá sido Bráulio Caldas aquele que melhor a
cantou. Enquanto não arranjo tempo para escrever sobre a biografia da serra contada por Esser Jorge, aqui fica uma balada em prosa que Bráulio dedicou à
Penha.
Bráulio Caldas (1861-1905) |
A pastora
dos cantares
I
Lá no alto
da Penha, no píncaro mais esguio da serra, que parece pendurado no céu, por um
véu de nuvenzitas brancas feitas de gotas de orvalho e raios de luz, a pastora
dos cantares vestida de madressilvas e coroada de folhas de hera, fresca e
robusta, rosada como os morangos, loura como os trigais, levanta-se com a
aurora, abre os grandes olhos azuis languidamente, cora e empalidece mesmo como
a aurora no horizonte, lá no alto da Penha, no píncaro mais esguio da serra,
que parece pendurado no céu, por um véu de nuvenzitas brancas, feitas de gotas
de orvalho e de raios de luz.
II
Quando a
cotovia em espirais ligeiras esvoaça pelas alturas, como que a pedir ao azul
luz, muita luz, vibrando um inefável concerto matutino em dueto com a estrela
da manhã, ela contempla a paisagem da terra, feita de maciços de verdura, e
vai banhar-se nas tinas de cristal que as pérolas de orvalho formam nos estofos
de musgo e nas folhitas das ervas, e cumprimenta as borboletas e os répteis que
lhe respondem na sua linguagem rude, sorve os perfumes das flores agrestes que
vivem lá pelas urzes dos montes; e depois de rezar a oração da manhã pelas
contas que a fonte cristaliza, destiando-as do seio da rocha, saúda entusiasticamente
a natureza inteira, enviando-lhe um canto fresco e luminoso como o som metálico
de um clarim, lá quando a cotovia em espirais ligeiras esvoaça pelas alturas,
como que pedindo ao azul luz, muita luz, vibrando um inefável concerto matutino
em dueto com a estrela da manhã.
III
Depois à
tarde, quando as cores sombrias e pálidas do crepúsculo se esbatem pelos
outeiros e o sol como uma enorme águia de oiro, morrendo pelo espaço sacode,
nuns estrebuchamentos moribundos as suas asas rutilantes pulverizando de oiro os
topos das montanhas, ela, a pastora dos cantares, recostada dolentemente na
macia rede de verde-escuro, baixa o rosto entristecido e interrogando os seus
leais companheiros, os animaizitos do monte, e as flores dos vales e as rochas
de granito, e os gemidos da fonte, e as brisas que perpassam e conta-lhes a
história triste de uns amores passados, extintos por uns caprichos ligeiros do
namorado, e, arquejando-lhe o peito com volúpia e saudade, soluça melancolicamente
e comove as florzitas e as águas e os vassalos do seu palácio e até as próprias
rochas, lá pela tarde quando as cores sombrias e pálidas do crepúsculo se
esbatem pelos outeiros e o sol como uma enorme águia de oiro, morrendo pelo
espaço, sacode nuns estrebuchamentos moribundos as suas asas rutilantes, pulverizando
de oiro os topos das montanhas.
IV
Mas quando a
escuridão passa a aguada lucubre pela tela do espaço e as aves da noite,
vigilantes como o pensamento, gemem um miserere de mágoas nos ramos dos
pinheiros, lá pela quebrada das serras, ela, despedindo-se com a oração da
noite do tecto azul cravado de pregos de prata, recolhe-se à sua alcova cavada
nas rochas, aquela gruta sombria, medonha e bela, arquitectada em colunas
toscas de granito, que parecem gigantes negros abraçados num amplexo de paz, e
na sombra e na tristeza, deita-se e dorme tranquilamente; ora sonhando umas fantasias
orientais, ou sensações voluptuosas quando a lua coa um raio pálido e morno
pelas florestas da gruta; ora sonhando um pesadelo horrível e majestoso, quando
a orquestra da tempestade açoita a floresta e a penedia, em acórdãos de
desespero, lá quando a escuridão passa uma aguada lúgubre pela tela do espaço,
e as aves da noite, vigilantes como o pensamento, soluçam um miserere de mágoas
nos ramos dos pinheiros, lá pelas quebradas da serra.
V
Uns
chamam-lhe a pastora dos cantares, outros a rainha dos bosques, outros a poesia
bucólica e eu chamo-lhe a minha amada, àquela que lá no alto da Penha, no píncaro
mais esguio da serra namora e canta a natureza, os encantos agrestes das colinas,
a solidão das grutas, os gemidos das fontes, os matizes das flores, as ramagens
das florestas, as searas dos campos, e ri com a alvorada, e suspira com a tarde
e entristeço com a noite e canta e canta... ora faz adormecer a alma em sonhos
de delícias, ora a faz voar, voar... em asas de luz pelo espaço fora... uns
chamam-lhe a pastora dos cantares, outros a rainha dos bosques, outros a poesia
bucólica; e eu chamo-lhe a minha amada.
Caldas de
Vizela — Agosto — 1887.
Bráulio Caldas.
Aurora da Penha, n.º único, Guimarães, 29 de Agosto de 1887, p. 11
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