Camilo Castelo Branco |
Serenou-se o aspecto
de Afonso de Teive, e fomos indo silenciosos, até apearmos em Guimarães na
estalagem da Joaninha, que está neste mundo a competir em graças, limpeza e
poesia com a Joaninha de Almeida Garrett, nas Viagens.
Jantámos, saímos a
ver a terra, que eu nunca vira em Dezembro, enxergámos à luz crepuscular umas
famosas damas da velha cidade que resistiam ao frio da tarde encostadas aos
peitoris das suas janelas; entrevimos galantíssimos olhos de outras através das
rótulas, que ainda agora nos estão contando virtudes de outras eras, virtudes
que precisavam de rótulas, como as belas flores exóticas precisam de estufa.
Voltámos à
estalagem, tomámos chá e uns pastelinhos que hão-de ir futuro além relembrando
o mavioso nome da Sra. Joaninha. Depois pedimos duas camas num quarto, e
tivemos a satisfação de ver que nos davam um quarto com cinco camas, ou coisa
assim.
– Há dez anos –
disse Afonso –, é esta a primeira vez que durmo fora de minha casa. Acho-me só
e estranho. Penso que estou a mil léguas de minha mulher e de meus filhos.
– Eu vou mandar
aparelhar as cavalgaduras – disse eu – e vamos embora, que está magnífica a
noite.
– Não – redarguiu
Afonso –, que preciso estar a sós contigo, uma noite. Debaixo das telhas que
cobrem minha mulher, os meus lábios não proferem o nome de outra. Ela já sabe
que eu fico em Guimarães. Falarei, e tu ouvirás, ou dormirás. Falarei do homem
que conheceste em 1851, para explicar o homem de 1863. Hás-de ver que lamaçais
atravessei, que ressacas afrontei, como eu me bati de peito com as puas de
ferro da desgraça, para chegar ao abrigo onde me encontraste. Não pasmarás
então da minha velhice precoce; ser-te-á assombro a minha vida. Se és infeliz,
consolar-te-ás. Se o não és, recearás sê-lo.
A noite, como sabem,
era de Dezembro.
As onze horas
consumiu-se de todo a vela. Afonso de Teive continuou a falar às escuras. Ao
rasgar da manhã, abrimos as portadas, e Afonso falava ainda.
Camilo Castelo Branco, Amor
de Salvação, 1864
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