O Carnaval do ano de 1879 não foi particularmente brilhante. Segundo a descrição que aparece no jornal Imparcial de 28 de Fevereiro, o Entrudo daquele ano, para o que veio fazer, escusado seria ter aparecido. Isto porque pelas ruas apenas se via um urso (sem ofensa) desempenhando o seu papel de animal fastidioso – no teatro, algum pobre dominó, que entra às 8 horas mudo e sai à 1 ou 2 tendo gasto a mesma eloquência! O Carnaval vimaranense de 1879 foi frio como a geada (...), taciturno como um dia enublado e insípido como a chuva miúda e incessante. Todavia, desse ano ficaram na memória dois bailes de máscaras nos palacetes de Francisco Martins Sarmento e do Conde de Margaride, realizados, respectivamente, nos dias 22 e 23 de Fevereiro. Um longo Folhetim, publicado no jornal Eco Popular, de 3 de Março, descreve aqueles bailes, de onde extraímos a notícia acerca da festa da casa de Martins Sarmento, que nos dá uma imagem do arqueólogo vimaranense algo diferente do retrato austero que, regra geral, se lhe associa.
Dois dias de triunfo em Guimarães
(…)
Dois dias de triunfo em Guimarães
(…)
Foi a noite de sábado
escolhida por este cavalheiro, hoje tão notavelmente festejado pelas suas
preciosas qualidades e pelo seu muito e profundo saber, para atrair aos seus
luxuosos salões todos quantos têm a honra e a ventura de cultivar a sua sincera
e leal amizade e de sua esposa, no que também vai felicitado e honrado o
escondido autor destas linhas.
Eram nove horas da
noite e já nos aposentos destinados à soirée masqueé redemoinhavam nos
compassados e vertiginosos movimentos de quadrilhas e valsas crescido número de
máscaras em apropriados e brilhantes costumes.
Soavam as 6 horas
da manhã do dia seguinte e ainda os basbaques da monotonia, toscanejando no
último quartel do pesado e longo sono, rangiam cá fora os dentes e mordiam a
língua de enraivecidos por entreverem ao raiar da aurora a sua caprichosa Deusa
com os acordes da harmonia, que acompanhavam o último episódio daquela suave e
saudosa e intercaladora passagem desta marmórea vida vimaranense. E Francisco Martins
Sarmento, louco de entusiasmo e palpitante alegria, apelava da sentença de
desocupação dos pais de famílias para alcançar mais um prazo de dilação, sem
querer sem dúvida com isto esconjurar os enguiços dos que se espreguiçavam lá
nas trevas exteriores e antes como que repetindo-lhes os seus convidativos e
formosos versos:
"Quem sente
roer-se
De pena e de
tédio
tem cá tal
remédio
Que val bem por
mil:
Estreite a
cintura
Dum par donairoso
E atire-se ao
gozo
Da valsa
febril!"
Mas desta vez era
tarde, tarde daquela noite que foi dia, manhã daquele dia que vinha a ser
noite, noite sombria de saudades sem esperança dum breve amanhecer para outra
festa semelhante.
E na
realidade, quem viu agitar-se
à influência dm astro de luz de mil cores o mais nobre e o mais belo núcleo da
sociedade vimaranense, quem sentiu palpitar de estranho modo o coração, sujeito
às inebriantes vibrações do almo calor que a inspiração derrama, pondo ao
serviço do bom gosto e do bom tom os toques mais finos da arte de aparecer por
um modo encantador, quem, passados os venturosos momentos, relembra aquele novo
mundo, chamado à vida pela vos poderosa e portentosa do amor da beleza com
todos dos seus naturais e artificiais adereços - quem tudo isto viu, sentiu e
gozou não pode deixar de recorrer à fantasia para que esta, na sua miraculosa
faculdade, nos continue aos olhos do espírito o mundo vaporoso e feiticeiro que
por toda aquela brevíssima noite nos embalou em luminosos sonhos acordados...
Quem
não viu então, veja, pois, agora:
A Exma.
condessa de Margaride, esta nobre e gentil senhora, não é, não foi nesta noite
a virtuosa esposa do conde de Margaride. É, foi, a majestosa e adorada Pitonisa
que evocou dos infernos a alma do profeta Samuel.
Que
majestosa figura, que donairoso porte, que propriedade e riqueza de ornatos.
Era a poesia bíblica no seu voo mais arrojado e mais simpático.
- D.
Cristina Martins, a mimosa e a flexível e meiga georgina portuguesa, não era o
botão de rosa que embalsama o ar de quantos a olham... era a pudica e casta princesa
dum alcaçar mourisco.
Que
turca, a valer mais do que todo o velho império do Islão.
Junto
a esta entra um anjo do céu da Andaluzia. Que parece no meigo esquecimento da
inquietação sevilhana a nossa patrícia D. Adelaide Martins. Seria? Agora um
grupo interessante: dum lado a vivaz granadina, do outro a morena veneziana e
por fim as tranças negras, desalinhadas e ondulantes duma doida com
muito juízo; e todas três em extremo insinuantes e simpáticas.
Dizem
os circunstantes que são D. Maria José, Doroteia e Rosa Meneses. Serão? E a
dama, castelã e namorada da legendária corte de Catarina de Medicis? “Parece,
pelos seus formosos olhos, que é a D. Adelaide Meneses"; - rosna um
informador. Obrigado pela notícia!
E
aquela simpática menina fugida dos ímpetos da inocência aos amorosos arrulhos
da ave azul celeste de Bernardim Ribeiro, disfarçada adrede nos caprichosos e
honestos recatos duma leiteira dos subúrbios? - "Chama-se D. Maria Martins
Vilas Boas, da nobre casa de Lousada" - segreda-me de soslaio um conviva
da esquerda. Muito agradecido pelo desengano!
E a
lavradeira, brilhando como a figura em escorço da tela miraculosa, onde um,
pincel bolçou a vida; e a donairosa polaca, profundamente meiga e
misteriosamente encantadora, que faz a sua entrada nos salões ao lado da estrela
da manhã, mimosíssima e preciosa criação que subleva o vivo desejo de a
guardar dentro duma redoma de vidro? - resmunga ainda a impertinência - é a
primeira uma nobre donzela de Lousada, a segunda D. Inês de Queirós, irmã
terceira de D. Cláudia de Queirós, adoráveis filhas do digno magistrado que ora
preside o foro de Guimarães. Veja-se também a animada e cismadora vivandeira,
mágico antídoto contra todas as más paixões, sem exceptuar a da guerra, cuja
profissão aliás exibe por forma que se deseja morrer a seu lado.
Dizem
que o seu nome é D. Guilhermina Pedrosa, da vila de Santo Tirso. Bem-vinda a
gentil e graciosa hóspeda.
Campeia
no centro desta animada exposição universal o vulto altivo e sereno da infeliz
Isabel de Inglaterra, a quem o poeta dedicou em verso o célebre lema, de que o
dia mais feliz da sua vida foi aquele em que mais amou. Aposta o meu
impertinente informador que esta é realmente D. Antónia de Melo Sampaio!
Fugiu
do deserto uma formosa filha do Emir Ab-del-Kader e desceu das montanhas da Suíça
uma ninfa da deusa da caça. estas são realmente o que parecem, E tanto assim
que iludem a curiosidade mais tenaz dos analisadores. Que belos dois tipos, que
duas tão encantadoras criaturas, capazes de fazerem, em benefício das respectivas
nacionalidades, a maior façanha feminina de que jamais houve memória. Uma, se
quisesse, converteria à crença do Alcorão meia cristandade deste reino fidelíssimo;
a outra atrairia, se o apetecesse, aos férteis cantões da república helvética
uma grande parte da jeunesse doré que, apesar de bem apercebida, só vê
caçadoras na Suíça e castelães árabes quando D. Maria d Carmo e D. Luísa
Pinheiro Osório lhas querem mostrar por milagre do seu bom gosto e primoroso
engenho.
E...
a contas com o tempo indiscreto e arrogante no seu fatal escorregar. Fique a
impressão desta noite para se erguer como marco miliário na vida monótona desta
terra, a par da noite em que op Snr. conde de Margaride proporcionou às
famílias de suas relações e amizade uma soirée masqueé.
(...)
Guimarães,
26 de Fevereiro de 1879
Z.
Eco Popular, Guimarães, 3
de Março de 1879
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