História, tradição e fantasia

Uma das marcas de Guimarães é a presença da História. Não conheço terra como esta, no que se refere à paixão pela História e à sua apropriação pelo comum das suas gentes. E, em Guimarães, o que não faltam são historiadores. Todos os dias surge um. Por aqui, dá-se um pontapé numa pedra e logo saltam dois historiadores de baixo dela. Se para ser ferreiro é preciso saber malhar o ferro, se para ser sapateiro é preciso saber coser sapatos, se para ser médico é preciso conhecer a medicina ou para ser juiz é preciso saber de leis, não falta quem julgue que para ser historiador não será necessário saber história. É por isso que não faltam por aí historiadores habilidosos que, por terem outros ofícios, ou por não terem nenhum, se sentem habilitados para fazerem ganchos no ramo dos estudos históricos, peroram com autoridade e sapiência sobre matérias em que os historiadores profissionais são cautelosos, proclamam certezas inabaláveis sobre matérias onde a historiografia coloca dúvidas, publicam na imprensa e na internet teorias explicativas de factos históricos problemáticos, ignorando por completo as ferramentas de que se serve a ciência histórica. Na ausência de perspectiva diacrónica, transformam em tradição milenar aquilo que apenas ontem começou a acontecer. Mergulham nos confins da Idade Média, um território da nossa História onde são mais a dúvidas do que as certezas, e, colando com cuspo duas ou três ideias que julgam ter aprendido na escola primária, proclamam verdades definitivas. Todavia, provavelmente, nunca puseram a vista em cima de um documento medieval.

O argumento mais recorrente que tem sido utilizado pelos nosso historiadores-biscateiros, na discussão que tem estado na ordem do dia acerca do nascimento de D. Afonso Henriques, para rebaterem a ideia de que o filho de Henrique e Teresa possa ter nascido noutro sítio qualquer, que não em Guimarães, é o de que o nascimento aconteceu em 1111 e não em 1109, como hoje é consensual entre os especialistas. Sustenta-se aquela data com base em duas “provas”: 1. a tradição (“em Guimarães sempre se comemorou o nascimento de D. Afonso Henriques no décimo primeiro ano de cada século”); 2. a inscrição na calçada do Jardim do Toural onde se lê MCXI.

Quanto ao argumento da tradição, diremos que, em Guimarães, o centenário do nascimento de D. Afonso Henriques apenas foi comemorado uma vez no décimo primeiro ano do século, em 1911. À altura, era essa a data mais consensual entre os especialistas, na esteira da opinião de Alexandre Herculano.

Quanto ao “documento” escrito nas pedras do Toural, ele é tão antigo como 1929, ano em que o pavimento do jardim foi revestido a calçada portuguesa.

A verdade é que os historiadores, mesmo os de Guimarães, sempre tiveram dúvidas quanto às circunstâncias do nascimento de D. Afonso Henriques. Indo até às vésperas das comemorações do centenário assinalado em 1911, podemos recordar aqui o que, sobre o assunto, escreveu em 1908 o Abade de Tagilde, o erudito vimaranense que melhor conheceu a documentação medieval referente à história local de Guimarães. Lemos na nota 1 da página 77, dos seus Vimaranis Monumenta Historica:

“É tradição ininterrupta que D. Afonso Henriques nasceu em Guimarães; não conhecemos porém documento coevo que possamos apresentar no texto para comprovar este facto.

O ano do nascimento não é averiguado; as narrativas históricas publicadas no volume Scriptores dos Port. Mon. Hist. fornecem-nos as seguintes datas: 1094, 1106, 1107, 1109, 1110, 1111, 1113 (Vide Scriptores, pag. 22, 97, 91, 2, 21, 19, 11, 94). Herculano, nota XI no fim do primeiro tomo da Hist. de Port., prefere o ano de 1111.”

Como se vê, em 1908, era persistente a tradição de que Afonso Henriques nasceu em Guimarães. Quanto à data, a tradição nada indicava de preciso, podendo ter ocorrido em sete anos diferentes, entre 1094 e 1113. A suposta “tradição” de 1111 tem origem em meados do séc. XIX, na obra de Herculano.

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